Abaporu (do tupi-guarani, significa "O homem que come"). De Tarsila do Amaral, 1928.
A vitalidade do modernismo brasileiro, no período áureo dos anos de
1920, é devedora de significativas obras literárias, de exposições
artísticas, debates candentes pelos jornais, criação de revistas,
apresentação de manifestos. Nesse conjunto a
Revista de Antropofagia
destacou-se pela concepção ousada e pelas idéias polêmicas. Lançada em
São Paulo, em 1928, por Oswald de Andrade e um grupo de amigos, como
Raul Bopp e António de Alcântara Machado. Com proposta gráfica ousada, a
Revista de Antropofagia teve duas fases bem diferenciadas,
divulgando editoriais questionadores, textos ficcionais, artigos
provocadores, comentários breves, notas de efeito cômico. Embora animada
pelo espírito inovador, há escolhas bastante contraditórias.
De maio de 1928 a fevereiro de 1929, a revista circulou de modo autônomo
como periódico, totalizando dez números, cada qual contendo oito
páginas. Nessa primeira etapa os editoriais assinados por António de
Alcântara Machado focalizam questões de ordem social e política. Oswald
de Andrade, Raul Bopp são presenças constantes. Entre os colaboradores
estão José Américo de Almeida, Luís da Câmara Cascudo, Ascenso Ferreira,
Ruy Cirne Lima. Comparecem vários jovens escritores de Minas, a exemplo
de Rosário Fusco, Abgar Renault, Carlos Drummond de Andrade, Rubens de
Moraes, Pedro Nava, Murilo Mendes. Há nomes já consagrados: Yan de
Almeida Prado, Manuel Bandeira, Augusto Meyer, Guilherme de Almeida,
Menotti Del Picchia, Álvaro Moreyra. Em meio aos textos, são
reproduzidos desenhos de Rosário Fusco (Cataguazes), Antonio Gomide, da
argentina Maria Clemência.
A capa da
Revista de Antropofagia estampa uma ilustração de
Hans Staden (1525-1579). A composição destaca aspectos de um ritual
ameríndio de devoração humana, em sintonia com o ideário proposto por
Oswald de Andrade no “Manifesto Antropófago”, divulgado no primeiro
número da revista. Ainda que pouco sistematizado, o manifesto é um
norteador de princípios. Sua linguagem poética, disposta num conjunto de
aforismos, contempla paródias, fórmulas exemplares, palavras de ordem,
transliterações de canto em língua geral, jogos verbais. Convive com a
irreverência e com o imediatismo panfletário. Em diálogo com o
manifesto, engasta-se no miolo da página um desenho de Tarsila do
Amaral,
O antropófago, seguindo as linhas do seu óleo sobre tela
Abaporu (“O homem que come”), ou seja,
O antropófago,
concluído em janeiro de 1928. A tela foi oferecida a Oswald em
janeiro, como presente de aniversário. Seguindo essa temática, Tarsila
publica na 2ª. “dentição” da revista o desenho
Antropofagia (abril) e a reprodução do óleo sobre tela de mesmo título (junho), ambos de 1929.
Com o intuito de arejar idéias, provocar, agitar, propunha-se então a
descida às nossas matrizes recalcadas, sem descartar o avanço técnico do
mundo contemporâneo, e em paridade com as idéias de Marx, de Freud, e
dos surrealistas. Oswald firma o manifesto “em Piratininga. Anno 374 da
Deglutição do Bispo Sardinha”. No conjunto dos escritos, um exemplo a
destacar é o artigo de página inteira na revista de número 5, em que
Oswald de Andrade aproveita para rebater críticas de Tristão de Athayde,
e reafirmar fundamentos de sua “antropofagia”, propondo uma revisão da
“história daqui e da Europa”. Sugere, então, que a data de nossa
independência seja 11 de outubro de 1492, “último dia da América livre,
pura, descolombisada, encantada e bravia”. Compreender o país
significava valorizar o legado primitivo dos ameríndios, o papel da
cultura africana em nosso meio, as manifestações de nossa arte popular
miscigenada. Nessa esteira reflexiva, envolvendo língua, cultura e
sociedade, Mário de Andrade publica “O lundu do escravo”; “Romance do
veludo”; “Lundu do escritor difícil”; “Antropofagia?”, além do capítulo
de abertura de
Macunaíma.(...)
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Texto de Maria Augusta Fonseca, Professora Livre Docente da Universidade de São Paulo (USP).