Não posso dizer que seja frequente, mas às vezes me acontece de, durante  o trabalho, ficar perdida em pensamentos e vir a vontade de escrever  umas coisas. Hoje, por exemplo. Eu estava na biblioteca às voltas com um  trabalho que tenho de entregar amanhã. O silêncio não era total mas  estava de bom tamanho. Ouvia até mesmo uns pios de passarinho vindo das  árvores próximas ao casarão. No geral o ambiente era perfeito, e o livro  em que eu trabalhava era muito inspirador, e chegava a ser difícil me  concentrar no lado técnico da coisa: a vontade era de me deixar levar,  sem ter de pensar em pontuação, ou estrutura de frase, ou colocação de  pronome e todo o resto. Só que enquanto lia o texto meio seduzida e ao  mesmo tempo tentava me concentrar nesses aspectos menores mas  necessários da língua, uma conversinha paralela - os tais pensamentos -  começou a surgir dentro da minha cabeça. Uma conversinha que eu tentava  abafar para não atrapalhar a concentração, mas que vinha justamente a  propósito do que estava a ler. Conseguia às vezes, não conseguia outras.
O  facto é que por isso o trabalho rendeu menos: se ontem li umas tantas  páginas em pouco mais de três horas, hoje levei quase toda a tarde para  ler, em quantidade, menos que ontem. Isso porque a tal conversa paralela  frequentemente me obrigava a ler e reler as frases pra ver se estava  tudo no lugar certo.
No entanto o livro acabou, e o trabalho será  entregue na data marcada.
E agora estou a pensar que essa "dispersão  concentrada" (ou concentração dispersa?) de hoje deve ter sido provocada  justamente por o  livro estar no fim. No fundo, resistia a que esse  prazer que se foi entranhando na minha rotina da última semana  terminasse pela imposição de um prazo.
E a tal conversa paralela não  era mais que um dado subversivo, uma resistência ao fim.
 
 

