“O sr. pode confimar se essa frase em francês está certa?” (Foto de Henry James por William M. Vander Weyde)
"Quando comecei a trabalhar com os livros da Penguin, a primeira reação foi de alívio: por se tratar de um selo dedicado a clássicos em domínio público, meu autor mais jovem teria morrido, pelo menos, em 1939.
Não entendam errado, gosto de trabalhar com autores vivos. Em sua imensa maioria, eles querem o mesmo que o editor: o livro bem-feito, a capa bonita, o lançamento no prazo. E alguns acabam até por se tornar bons amigos.
Mas a edição de um livro é também um momento difícil na vida de qualquer autor — uma espécie de limbo entre a entrega dos originais e o momento da publicação —, muito propício a crises de ansiedade, insegurança e, aqui e ali, de loucura generalizada.
E o autor vivo também acarreta ansiedade no editor: aquele livro prometido em 2007, no qual você depositou todas as suas expectativas, e que simplesmente não aparece na caixa de entrada. Ou a capa que você gostou, mas que acaba recusada sabe-se lá por quê. E mesmo alguns autores estrangeiros já colaboraram para o meu envelhecimento precoce.
De modo que a oportunidade de trabalhar com os mortos e, em especial, com os mortos há muitos séculos — sem herdeiros, espólio, agentes — pareceu uma barbada. O trabalho em si era o mesmo: achar tradutores bons, cuidar do texto, escolher capa, resolver as dezenas de problemas que cada livro apresenta. A diferença é que as decisões caberiam agora ao Matinas Suzuki (coordenador da empreitada Penguin) e a mim, e não a um autor temperamental, pronto para reescrever o capítulo doze no último minuto.
Ótimo, então. Vamos fechar os livros.
A saudade dos meus autores vivos bateu imediatamente. Porque com os vivos, mesmo os neuróticos, podemos tirar dúvidas. Confirmar trechos mais cabeludos. Fazer sugestões. No caso dos clássicos, para se tirar uma dúvida é preciso recorrer à fortuna crítica da obra. E os acadêmicos, como se sabe, raramente concordam entre si. Mais: alguns desses livros têm séculos de idade, e o próprio idioma original já se transformou. Uma palavra que tinha um determinado sentido na época em que o livro saiu, hoje pode ter se transformado completamente. Quem responde por isso?
O crédito vai ao esforço monumental dos tradutores, que não raro se embrenham em biografias e estudos críticos sobre os autores que estão traduzindo. Pois é preciso também conhecer o contexto em que a obra foi escrita. Assim, uma frase que pode soar estranha aos ouvidos modernos tem uma justificativa histórica para ficar daquela maneira. O fato é que, ao contrário dos autores vivos, não podemos simplesmente telefonar para o Henry James e confirmar se aquela frase em francês está mesmo correta (estava).
Em outros livros, você descobre que justamente o trecho que empacou tudo, e para o qual você buscava uma resposta desde janeiro, vem sendo discutido há décadas, sem nenhuma espécie de consenso ou definição. Nesses casos, há algumas opções: recorrer a edições críticas da obra, levantar a dubiedade do trecho em uma nota de rodapé ou, a minha preferida, chorar copiosamente.
Acho que não existe autor perfeito, e nem editor. Um livro é um bicho com dezenas de cabeças, um problema resolvido leva ao surgimento de outros doze, e é preciso um pouco de paciência até que tudo se acerte. Em se tratando de autores vivos, às vezes é fácil, às vezes dá briga, mas podemos sugerir coisas, dirimir dúvidas, tomar uma cerveja em comemoração ao lançamento. Com os mortos, não há reclamação do autor. Todavia, há séculos de leituras sobre a obra, dezenas de especialistas que entendem mais do que você do assunto, enfim, o chamado escrutínio da rapaziada.
No fim, o mais importante é que nada disso — as discussões, os problemas, as dúvidas — transpareça no livro. Dentro da obra, é fundamental que o editor seja invisível. Fora, você pode ver um punhado deles por aí, chorando pelos cantos, abraçados na gramática do Bechara e falando em gerúndios."