sexta-feira, 2 de novembro de 2012

fidelidade ao lirismo

Do blogue da Cosac Naify (link), um texto de Manuel Bandeira, de 1930, no jornal A Província, sobre o ainda quase desconhecido Carlos Drummond de Andrade:

Um poeta mineiro de rara sensibilidade
Por Manuel Bandeira 

Não sei se o nome de Carlos Drummond de Andrade é conhecido em Pernambuco fora do pequeno círculo de pessoas que se interessam pela poesia modernista. Quero acreditar que não. Sem livro até agora, o seu nome não aparecera senão nas revistinhas efêmeras de vanguarda, que não chegam ao conhecimento do grande público. Aos pernambucanos que se tenham interessado pelo número mineiro do O Jornal por causa dos admiráveis desenhos do meu xará, não terá escapado o belo poema de Carlos Drummond inspirado na tradicional romaria de Congonhas do Campo.
O poeta é mineiro e deve andar pelos trinta anos. Antes da renovação modernista fizera versos medidos e rimados, creio que naquela cor desmaiada de Samain que aqui chamaram penumbrista. Quando os rapazes de São Paulo começaram a batalha, o senhor Carlos Drummond de Andrade escreveu na imprensa de Belo Horizonte uma série de artigos sobre as figuras principais daquele movimento. Mais tarde, com João Alphonsus, Pedro Nava, Martins de Almeida, Emílio Moura e outros editou A Revista, de que só apareceram três números. Mas desde então o nome de Carlos Drummond de Andrade era caro a todos que se ocupavam de poesia no Brasil.
Em Drummond a perfeição técnica não resulta do gosto e trabalho do artista, mas da fidelidade do poeta ao movimento lírico da sensibilidade.
Agora o poeta comparece em livro. E esse livro nos revela, logo ao primeiro exame, um dos mais puros e belos da nossa poesia. Não pode haver dúvida: Carlos Drummond de Andrade é um dos grandes poetas do Brasil. Grande pelo fundo de sensibilidade e lirismo como grande pela técnica impecável de seus poemas. Aliás esses dois aspectos são inseparáveis nos versos de Alguma poesia (assim se intitula o seu livro). Em Carlos Drummond de Andrade a perfeição técnica não resulta, como em Guilherme de Almeida, do gosto e trabalho do artista, mas da fidelidade do poeta ao movimento lírico da sensibilidade. Daí a frescura desse lirismo que sabe à fruta comida ao pé da árvore. Na expressão esse poeta é sempre simples, natural, quotidiano. Vê-se como ele vive, meio amolado com aquele anjo torto que lhe disse quando ele nasceu: “Carlos, vai ser goche na vida”. Fala pouco e não diz, pelo menos intencionalmente, nada que possa parecer sublime. Antes tem ele um senso de humor sempre vigilante e pronto a cortar as asas a tudo que possa indicar alguma atitude menos desabusada. Os seus maiores entusiasmos se exprimem como nos deliciosos versos da “Lagoa”:

Eu não vi o mar.
Não sei se o mar é bonito,
não sei se ele é bravo.
O mar não me importa.
Eu vi a lagoa.
A lagoa, sim.
A lagoa é grande
e calma também.
Na chuva de cores
da tarde que explode
a lagoa brilha
a lagoa se pinta
de todas as cores.
Eu não vi o mar,
Eu vi a lagoa…

Carlos Drummond de Andrade aborrece as “atitudes inefáveis”, “os inexprimíveis delíquios”, os “êxtases, espasmos, beatitudes”, tão do gosto daquele sujeito gozado da “Fuga”: “Povo feio, moreno, bruto”, diz o tal. “Vou perder-me nas mil orgias/ do pensa- mento greco-latino”.

Vai para a Europa.
Enquanto os bárbaros sem barbas
sob o Cruzeiro do Sul
se entregam perdidamente
sem anatólios nem capitólios
aos deboches americanos

O lirismo é uma coisa perigosa. Faz a gente dizer bestidades, extravagâncias, sentimentalonidades. O pior são os lugares-comuns [...] em que o desgraçado poetinha parece querer virar gênio. Com o senhor Carlos Drummond de Andrade não se corre nunca esse risco. Ninguém pensa em águias. Também não se pensa em cisnes. Aqui haverá talvez vôo versátil, graça inteligente de andorinha. Vejam se está certo:

Quero me casar
na noite, na rua,
no mar ou no céu
quero me casar.
Procuro uma noiva
loura morena
preta ou azul
uma noiva verde
uma noiva no ar
como um passarinho.
Depressa, que o amor
não pode esperar!

Que poema brilhantíssimo não faria o senhor Martins Fontes ou o senhor Luís Carlos, que doce e fidalgo poema não arquitetaria o senhor Olegário Mariano com esse tema do Amor através das Idades! É de ver como o mineiro Carlos Drummond de Andrade se imaginou com a namorada; grego, romano, pirata mouro, corte- são de Versalhes e moço moderno. A poesia é longa demais para estas colunas, mas um episódio apenas:

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Talvez fosse preciso ter sangue mineiro, ter vivido longamente nas “cidadezinhas quaisquer” de Minas, para, com ser poeta de rara sensibilidade e, não esquecer, inteligentíssimo, exprimir-se assim com tanta graça natural. Me parece que por Minas se pode e se deve explicar esse senso de humor, tão raro em nossos poetas, e no entanto comum nos mineiros que não são poetas. Ou nos poetas mineiros quando não se acham em estado de transe…
A Província, 25 de maio de 1930


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