"... e subscrevo as palavras de Goethe, segundo as quais, para compreendermos inteiramente as grandes criações, não basta vê-las só no seu estado perfeito, temos de surpreendê-las também à medida que se vão constituindo. Mas do ponto de vista óptico, um primeiro rascunho de Beethoven, com os seus traços impetuosos, impacientes, com a desordenada confusão de motivos iniciados e abandonados, com a fúria criadora da sua natureza a transbordar de demoníaco, comprimida nuns quantos riscos feitos a lápis, também me estimula fisicamente, porque o seu aspecto espevita todo o meu espírito; consigo ficar a olhar para uma tal página hieroglífica com o encanto e o amor com que outros apreciam um quadro acabado. Uma página de Balzac com correcções, onde praticamente cada frase se encontra dilacerada, cada linha revolvida, a margem branca mordiscada a preto por traços, sinais, palavras, torna-se perceptível a erupção de um vesúvio humano; e um qualquer poema que eu tenha amado durante anos e que veja pela primeira vez no manuscrito original, na sua primeira manifestação terrena, desperta em mim um sentimento de religiosa veneração; (...)."
Citado do livro O Mundo de Ontem – recordações de um europeu, p. 183
autor: Stefan Zweig
tradução de Gabriela Fragoso
Editora Assírio & Alvim
Março de 2005
Lisboa
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