quarta-feira, 31 de março de 2010

Paulo Leminski - o porquê da poesia

O que é isso de ser revisor?

Texto de Manuel Matos Monteiro
Retirado do Ciberdúvidas de 15/9/2009.

"Ser revisor de textos como principal ocupação profissional é ter uma vida diferente. É ver menos pessoas do que na maior parte dos outros trabalhos. É estar em casa grande parte do tempo. É não ter horários, mas prazos. É gozar do prazer de passar os dias a ler e ainda ser pago por isso. Um revisor é, por imperativo profissional, um leitor omnívoro. Um especialista das engrenagens da língua, desde as suas estruturas maiores até às suas partículas mais ínfimas, aos seus ossinhos e parafusos.

Quem se aventura na revisão deve estar preparado para conviver com a ingratidão. Porque o revisor sabe o quão diferentes são os livros antes de passarem pelas suas mãos. E, contudo, eles têm apenas um lugar minúsculo reservado para si na ficha técnica (quando têm). Ao contrário de um tradutor, o nome do revisor não constitui um chamativo da obra, apesar do acréscimo de valor que dá aos livros que cinzela.

O revisor é, no fundo, o escritor da sombra, o duplo do actor de cinema que entra em cena quando este não está preparado para o salto. Dependendo da margem que as editoras e os autores lhe concedem, dependendo também do seu perfil – mais ou menos intervencionista –, ele pode ser um mero reparador de erros ou alguém que reescreve frases, embelezando-as. Sim, o bom revisor deve amar as palavras. Não ser apenas um engenheiro ou um contabilista das mesmas. Só amando as palavras, as poderá lascar, aparar, envernizar, polir, perfumar.

Seria interessante publicar-se um livro de um grande escritor em estado de pré-revisão, de modo que os leitores compreendessem a importância do revisor.

São necessárias três características para a execução da revisão. Primeira: possuir-se uma boa cultura geral. Quanto mais assuntos se dominar, mais erros de conteúdo se detectará (algumas editoras contratam um revisor científico, à parte do revisor linguístico, para obras mais especializadas). Segunda: ter-se uma elevada capacidade de concentração. Ao rever, é preciso ler simultaneamente com um duplo olhar: o olhar da forma, atento à vírgula que falta, e o olhar do conteúdo, que exclama «eureca!» quando a personagem que era coxa, a certa altura da narrativa, desata a correr mais do que as outras. Um revisor assemelha-se, neste sentido, a um trabalhador numa torre de controlo – a sua concentração tem de ser absoluta e ininterrupta, porque a mínima distracção será fatal. Terceira: conhecer-se as leis e os processos da linguística, e, ainda assim, manter-se sempre a humildade de consultar todos os manuais de gramática e todas as doutas opiniões.

Há um corolário nocivo a que dificilmente qualquer revisor escapará: o seu olhar de leitor será contaminado pelo seu olhar de revisor. A fruição da leitura ressentir-se-á do seu sempre atento olho de lince.

Às vezes, penso que a profissão que mais se aparenta com a do revisor é a do árbitro de futebol. Estranha comparação, dir-se-á em primeira análise. A verdade é que o único aspecto visível do trabalho de ambos é o erro. Dá-se pela existência de tais ofícios apenas quando eles falham."

segunda-feira, 29 de março de 2010


No blog do Kovacs, Mundo de K, não pude resistir a comentar uma matéria sobre a atração que a capa de um livro pode exercer sobre um potencial comprador, e até que ponto ela pode decidir a compra do livro. Lembrei-me, então, da minha atração quase instantânea por um certo livro cuja capa, associada a todo o objecto físico, e à autora, foi um dos sinais mais claros e acertados quanto à satisfação que eu logo depois sentiria ao ler O Amante do Vulcão, de Susan Sontag, edição de 1997 da Quetzal Editores, Lisboa. Capa e arranjo gráfico de Rogério Petinga. Tradução (excelente) de José Lima. 430 pp.

Estimulante e engenhosamente construído, rico em invenções especulativas e enriquecido por um humor saboroso e personagens de grande fascínio, O Amante do Vulcão é um daqueles livros em que se pudéssemos, adiaríamos o fim, para lermos sempre mais um pouco, e mais um pouco...

P. S. Mas afinal, para revelar mais um aspecto importante deste livro, agora a nível pessoal, acrescento que ele reuniu, entre os responsáveis pela sua publicação em Portugal, pessoas que vim a conhecer logo depois que o li, por uma feliz coincidência, e que serão sempre referências de competência para mim, e de boa amizade nas relações que desde então mantivemos. Escrevo este post-scriptum como uma muitíssimo singela homenagem a elas.




sábado, 27 de março de 2010

sempre Drummond

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

(Amar - Carlos Drummond de Andrade)

terça-feira, 23 de março de 2010

A Sociedade Invisível



Enquanto espero a publicação de dois livros recentes para comentar, trago este A Sociedade Invisível, que leio para me ajudar a pensar os tempos de hoje. Recebeu os Prémios Espasa Ensaio, Miguel Unamuno e Nacional de Literatura; e a leitura não me tem decepcionado nem um pouco: texto exigente pelo nível de reflexão, mas ao mesmo tempo bem acessível ao leitor interessado no tema. Recomendo.


Da Introdução: (...) "Esta teoria da sociedade invisível aspira, precisamente, a formular uma interpretação filosófica do século XXI, isto é: procurando mais o sentido das coisas que acontecem e menos a acumulação erudita de dados. Mas, ao mesmo tempo, procura entender a nova configuração do mundo sem sacrificar a sua complexidade no altar de uma lei única que pudesse explicar a paisagem social. O estudo da sociedade dá-nos hoje a imagem de um campo desestruturado e não a de um objecto iluminado pelo saber e cujos elementos se inserissem num todo coerente. A crise de determinadas expectativas e evidências deu-nos a possibilidade de perceber de uma maneira mais exacta a configuração dos fenómenos sociais, quanto mais não seja na forma de compreender a dificuldade dessa percepção. É indubitável que vivemos numa sociedade que escapa à nossa compreensão teórica e ao nosso domínio prático em mais inquietante medida que noutras épocas menos perplexas acerca de si próprias."


A Sociedade Invisível - Como observar e interpretar as transformações do mundo actual
Daniel Innerarity
Tradução: Manuel Ruas
236 pp
Editora Teorema
Lisboa, Julho de 2009

terça-feira, 16 de março de 2010

"conversa paralela"

Não posso dizer que seja frequente, mas às vezes me acontece de, durante o trabalho, ficar perdida em pensamentos e vir a vontade de escrever umas coisas. Hoje, por exemplo. Eu estava na biblioteca às voltas com um trabalho que tenho de entregar amanhã. O silêncio não era total mas estava de bom tamanho. Ouvia até mesmo uns pios de passarinho vindo das árvores próximas ao casarão. No geral o ambiente era perfeito, e o livro em que eu trabalhava era muito inspirador, e chegava a ser difícil me concentrar no lado técnico da coisa: a vontade era de me deixar levar, sem ter de pensar em pontuação, ou estrutura de frase, ou colocação de pronome e todo o resto. Só que enquanto lia o texto meio seduzida e ao mesmo tempo tentava me concentrar nesses aspectos menores mas necessários da língua, uma conversinha paralela - os tais pensamentos - começou a surgir dentro da minha cabeça. Uma conversinha que eu tentava abafar para não atrapalhar a concentração, mas que vinha justamente a propósito do que estava a ler. Conseguia às vezes, não conseguia outras.
O facto é que por isso o trabalho rendeu menos: se ontem li umas tantas páginas em pouco mais de três horas, hoje levei quase toda a tarde para ler, em quantidade, menos que ontem. Isso porque a tal conversa paralela frequentemente me obrigava a ler e reler as frases pra ver se estava tudo no lugar certo.
No entanto o livro acabou, e o trabalho será entregue na data marcada.
E agora estou a pensar que essa "dispersão concentrada" (ou concentração dispersa?) de hoje deve ter sido provocada justamente por o livro estar no fim. No fundo, resistia a que esse prazer que se foi entranhando na minha rotina da última semana terminasse pela imposição de um prazo.
E a tal conversa paralela não era mais que um dado subversivo, uma resistência ao fim.

Fazer a revisão de livros que acabamos por adorar, mas que não podemos ler, simplesmente, sem a presença do "olho técnico".

sexta-feira, 12 de março de 2010

a "minha" livraria: Livraria da Travessa

Digo "minha" porque na década de 90 trabalhei numa editora que ficava nos andares superiores do mesmo prédio. Íamos com frequência à "Travessa", que então era também um pouco a nossa biblioteca para consultas diversas, além da livraria que nos deliciava com os últimos lançamentos nacionais e estrangeiros. Era uma livraria diferente das outras, com uma cara nova, pequena mas muito acolhedora, e com gente preparada para atender os clientes mais exigentes. Era o nosso "oásis" numa cidade turbulenta e caótica.
Criou-se então uma relação sentimental com a Travessa, e com esta em particular, a primeira de todas, na Travessa do Ouvidor nº 17. Fica no centro do Rio de Janeiro.
Hoje estive lá de novo.





voltas que o mundo dá

Há cerca de doze anos, e por caminhos que a sorte e o acaso às vezes nos reservam, conheci em Lisboa uma editora com quem estive a conversar talvez durante uns trinta minutos. Era véspera da minha viagem de volta ao Brasil e ela, gentilmente, me cedeu aqueles minutos do seu dia. Eu buscava trabalho em Portugal.
É preciso dizer que aqueles trinta minutos me fizeram desejar, logo a seguir, poder um dia trabalhar com ela, tal a admiração que me inspirou pelo seu conhecimento do ofício da edição e visão abrangente. Sabia que a hipótese era muitíssimo remota... mas não impossível.
Quatro anos mais tarde, já estabelecida em Portugal, e a trabalhar em edição - a minha actividade de sempre - eis que nos reencontrámos através de amigos comuns, tradutores e editores.
Passaram-se treze anos desde aqueles trinta minutos, e o reencontro acabou por resultar num convívio profissional de grande significado para mim, e que ainda hoje permanece.
Têm sido tempos nem sempre fáceis, mas de muito aprendizado.
Voltas que o mundo dá, e que vale a pena registar.

o texto visto de perto

Edição de um discurso do Obama.

Guardadas as proporções, há páginas de revisão que ficam bem próximas destas aí...

(esta imagem foi retirada do Blogtailors de 10 de Março a comentar uma nova edição de Finnegan's Wake)

segunda-feira, 8 de março de 2010

Blooks. Os livros e o formato digital.

"Ler, ouvir e ver
Mas, e aí? Qual a diferença entre um blog de poesia
e um livro? Entre um podcast e um rádio? Entre um blogueiro
e um cronista? Entre eu e você?"
(do folheto da exposição Blooks)

O termo blook tem sido utilizado para referir um livro publicado através de um blogue ou um livro impresso que traz o conteúdo de um blog: ou seja, letras na rede, tema da exposição Blooks, em 2007, na OI, FUTURO - Rua Dois de Dezembro, 63, Flamengo - Rio de Janeiro. http://www.oifuturo.org.br/

domingo, 7 de março de 2010

o Rio de Ruy Castro e de todos nós


Há livros assim. Não sei se são eles desiguais ou eu, mas o facto é que somente agora estou a terminar de ler Rio de Janeiro - Carnaval de fogo, em edição da ASA. Aproveito para alimentar o meu imaginário fervilhante de recordações e saudades da minha cidade com esta crónica generosa de Ruy Castro.
Daí fico a saber que houve quem quisesse desmontar o Pão de Açúcar para arejar a cidade - o que realmente foi feito com os morros do Castelo e de Santo António -, e mais uns tantos absurdos saídos das penas e papeis de arquitetos (ou menos que isso). Até mesmo Le Corbusier apresentou um projecto urbanístico que previa a construção de viaduto desde o centro da cidade até ao Leblon, pelo litoral! - bem, sem comentários...

Desigualdades ou intermitências à parte, é um livro imperdível para cariocas ou somente para apaixonados pelo Rio. Ou então para os que simplesmente gostam das histórias de uma cidade - e em 500 anos, ali houve muitas.

o "projeto" de Le Corbusier, o racionalismo levado a um extremo que poderia ter violentado a cidade...


Rio de Janeiro - Carnaval de Fogo

Ruy Castro
290 pp
Colecção O Escritor e a Cidade
Edições ASA
Julho de 2006, Lisboa

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