Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
(Amar - Carlos Drummond de Andrade)
sábado, 27 de março de 2010
terça-feira, 23 de março de 2010
A Sociedade Invisível

Enquanto espero a publicação de dois livros recentes para comentar, trago este A Sociedade Invisível, que leio para me ajudar a pensar os tempos de hoje. Recebeu os Prémios Espasa Ensaio, Miguel Unamuno e Nacional de Literatura; e a leitura não me tem decepcionado nem um pouco: texto exigente pelo nível de reflexão, mas ao mesmo tempo bem acessível ao leitor interessado no tema. Recomendo.
Da Introdução: (...) "Esta teoria da sociedade invisível aspira, precisamente, a formular uma interpretação filosófica do século XXI, isto é: procurando mais o sentido das coisas que acontecem e menos a acumulação erudita de dados. Mas, ao mesmo tempo, procura entender a nova configuração do mundo sem sacrificar a sua complexidade no altar de uma lei única que pudesse explicar a paisagem social. O estudo da sociedade dá-nos hoje a imagem de um campo desestruturado e não a de um objecto iluminado pelo saber e cujos elementos se inserissem num todo coerente. A crise de determinadas expectativas e evidências deu-nos a possibilidade de perceber de uma maneira mais exacta a configuração dos fenómenos sociais, quanto mais não seja na forma de compreender a dificuldade dessa percepção. É indubitável que vivemos numa sociedade que escapa à nossa compreensão teórica e ao nosso domínio prático em mais inquietante medida que noutras épocas menos perplexas acerca de si próprias."
A Sociedade Invisível - Como observar e interpretar as transformações do mundo actual
Daniel Innerarity
Tradução: Manuel Ruas
236 pp
Editora Teorema
Lisboa, Julho de 2009
quarta-feira, 17 de março de 2010
terça-feira, 16 de março de 2010
"conversa paralela"
Não posso dizer que seja frequente, mas às vezes me acontece de, durante o trabalho, ficar perdida em pensamentos e vir a vontade de escrever umas coisas. Hoje, por exemplo. Eu estava na biblioteca às voltas com um trabalho que tenho de entregar amanhã. O silêncio não era total mas estava de bom tamanho. Ouvia até mesmo uns pios de passarinho vindo das árvores próximas ao casarão. No geral o ambiente era perfeito, e o livro em que eu trabalhava era muito inspirador, e chegava a ser difícil me concentrar no lado técnico da coisa: a vontade era de me deixar levar, sem ter de pensar em pontuação, ou estrutura de frase, ou colocação de pronome e todo o resto. Só que enquanto lia o texto meio seduzida e ao mesmo tempo tentava me concentrar nesses aspectos menores mas necessários da língua, uma conversinha paralela - os tais pensamentos - começou a surgir dentro da minha cabeça. Uma conversinha que eu tentava abafar para não atrapalhar a concentração, mas que vinha justamente a propósito do que estava a ler. Conseguia às vezes, não conseguia outras.
O facto é que por isso o trabalho rendeu menos: se ontem li umas tantas páginas em pouco mais de três horas, hoje levei quase toda a tarde para ler, em quantidade, menos que ontem. Isso porque a tal conversa paralela frequentemente me obrigava a ler e reler as frases pra ver se estava tudo no lugar certo.
No entanto o livro acabou, e o trabalho será entregue na data marcada.
E agora estou a pensar que essa "dispersão concentrada" (ou concentração dispersa?) de hoje deve ter sido provocada justamente por o livro estar no fim. No fundo, resistia a que esse prazer que se foi entranhando na minha rotina da última semana terminasse pela imposição de um prazo.
E a tal conversa paralela não era mais que um dado subversivo, uma resistência ao fim.
O facto é que por isso o trabalho rendeu menos: se ontem li umas tantas páginas em pouco mais de três horas, hoje levei quase toda a tarde para ler, em quantidade, menos que ontem. Isso porque a tal conversa paralela frequentemente me obrigava a ler e reler as frases pra ver se estava tudo no lugar certo.
No entanto o livro acabou, e o trabalho será entregue na data marcada.
E agora estou a pensar que essa "dispersão concentrada" (ou concentração dispersa?) de hoje deve ter sido provocada justamente por o livro estar no fim. No fundo, resistia a que esse prazer que se foi entranhando na minha rotina da última semana terminasse pela imposição de um prazo.
E a tal conversa paralela não era mais que um dado subversivo, uma resistência ao fim.
sexta-feira, 12 de março de 2010
a "minha" livraria: Livraria da Travessa
Digo "minha" porque na década de 90 trabalhei numa editora que ficava nos andares superiores do mesmo prédio. Íamos com frequência à "Travessa", que então era também um pouco a nossa biblioteca para consultas diversas, além da livraria que nos deliciava com os últimos lançamentos nacionais e estrangeiros. Era uma livraria diferente das outras, com uma cara nova, pequena mas muito acolhedora, e com gente preparada para atender os clientes mais exigentes. Era o nosso "oásis" numa cidade turbulenta e caótica.
Criou-se então uma relação sentimental com a Travessa, e com esta em particular, a primeira de todas, na Travessa do Ouvidor nº 17. Fica no centro do Rio de Janeiro.
Hoje estive lá de novo.



Criou-se então uma relação sentimental com a Travessa, e com esta em particular, a primeira de todas, na Travessa do Ouvidor nº 17. Fica no centro do Rio de Janeiro.
Hoje estive lá de novo.
voltas que o mundo dá
Há cerca de doze anos, e por caminhos que a sorte e o acaso às vezes nos reservam, conheci em Lisboa uma editora com quem estive a conversar talvez durante uns trinta minutos. Era véspera da minha viagem de volta ao Brasil e ela, gentilmente, me cedeu aqueles minutos do seu dia. Eu buscava trabalho em Portugal.
É preciso dizer que aqueles trinta minutos me fizeram desejar, logo a seguir, poder um dia trabalhar com ela, tal a admiração que me inspirou pelo seu conhecimento do ofício da edição e visão abrangente. Sabia que a hipótese era muitíssimo remota... mas não impossível.
Quatro anos mais tarde, já estabelecida em Portugal, e a trabalhar em edição - a minha actividade de sempre - eis que nos reencontrámos através de amigos comuns, tradutores e editores.
Passaram-se treze anos desde aqueles trinta minutos, e o reencontro acabou por resultar num convívio profissional de grande significado para mim, e que ainda hoje permanece.
Têm sido tempos nem sempre fáceis, mas de muito aprendizado.
Voltas que o mundo dá, e que vale a pena registar.
É preciso dizer que aqueles trinta minutos me fizeram desejar, logo a seguir, poder um dia trabalhar com ela, tal a admiração que me inspirou pelo seu conhecimento do ofício da edição e visão abrangente. Sabia que a hipótese era muitíssimo remota... mas não impossível.
Quatro anos mais tarde, já estabelecida em Portugal, e a trabalhar em edição - a minha actividade de sempre - eis que nos reencontrámos através de amigos comuns, tradutores e editores.
Passaram-se treze anos desde aqueles trinta minutos, e o reencontro acabou por resultar num convívio profissional de grande significado para mim, e que ainda hoje permanece.
Têm sido tempos nem sempre fáceis, mas de muito aprendizado.
Voltas que o mundo dá, e que vale a pena registar.
o texto visto de perto
(esta imagem foi retirada do Blogtailors de 10 de Março a comentar uma nova edição de Finnegan's Wake)
segunda-feira, 8 de março de 2010
domingo, 7 de março de 2010
o Rio de Ruy Castro e de todos nós

Há livros assim. Não sei se são eles desiguais ou eu, mas o facto é que somente agora estou a terminar de ler Rio de Janeiro - Carnaval de fogo, em edição da ASA. Aproveito para alimentar o meu imaginário fervilhante de recordações e saudades da minha cidade com esta crónica generosa de Ruy Castro.
Daí fico a saber que houve quem quisesse desmontar o Pão de Açúcar para arejar a cidade - o que realmente foi feito com os morros do Castelo e de Santo António -, e mais uns tantos absurdos saídos das penas e papeis de arquitetos (ou menos que isso). Até mesmo Le Corbusier apresentou um projecto urbanístico que previa a construção de viaduto desde o centro da cidade até ao Leblon, pelo litoral! - bem, sem comentários...
Desigualdades ou intermitências à parte, é um livro imperdível para cariocas ou somente para apaixonados pelo Rio. Ou então para os que simplesmente gostam das histórias de uma cidade - e em 500 anos, ali houve muitas.


Rio de Janeiro - Carnaval de Fogo
Ruy Castro
290 pp
Colecção O Escritor e a Cidade
Edições ASA
Julho de 2006, Lisboa
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